terça-feira, 12 de fevereiro de 2008

Encontro com a Culpa

Uma noite dessas, andando pela Alfonso Bovero, ali pra baixo da MTV, topei com ela, a Culpa. Estava entre os mendigos que dormem embaixo de uma marquise, enrolada num cobertor e tentando não se importar com o frio. Me aproximei:

- Culpa! É você?
Ela abriu os olhos com cara de vontade de conversar.
- Ô, rapaz, beleza?
- Que saudade, Culpa – você nunca mais foi me acordar depois daquelas bebedeiras em que eu fazia tanta besteira...
- Pois é. Percebi que o senhor não gostava das minhas visitas. Pois não é o único. Ninguém mais quer que eu apareça. Todo mundo acha que pode viver sem mim.
- Que é isso, Culpa, eu te considero pra caramba.
- Mas o senhor não reparou? Estou numa baixa danada. Os sexólogos, as propagandas de TV, as revistas de bem-estar, todo mundo fica dizendo “Livre-se da Culpa, livre-se da Culpa!” As mulheres infiéis, os políticos traidores, os policiais covardes e principalmente os jovens... ninguém mais fica culpado. É por isso estou aqui, abandonada como um mendigo.
- Mas... mas e o suicida? E a velhinha católica?
- O suicida morreu. E a velhinha católica até sente culpa, mas do que ela me serve? Não faz nada de errado, não dá nenhum espaço para eu corrigir seu caminho. Se pelo menos as pessoas ainda acreditassem em Deus. Se pelo menos Nelson Rodrigues ainda estivesse vivo, para dizer que, sem mim, estaríamos de quatro, urrando no bosque...
- E os criminosos?
- Ah, já desisti deles. Depois que um monte de gente começou a falar que crime é coisa da sociedade, que os ladrões não devem ter culpa, depois disso nenhum criminosinho cruel, nenhum Raskolnikov vai mais com a minha cara. Até as crianças e os adolescentes acham que podem numa boa roubar o tênis de quem passa na rua.
- Mas, Culpa, você não pensou, sei lá, em atingir outro publico?
- Tentei. Uma vez, vi uma moça dentro de uma Mercedes que ficou bem triste ao avistar um pobre. Daí pensei que poderia haver muitos ricos bem propensos a andar comigo. Até deu certo – você não reparou que muita gente rica e até de classe média anda culpada por não ser pobre?
- Pois é...
- Por uns meses, eu fazia muito sucesso aqui nessa região, principalmente ali na Vila Madalena. Mas daí desencanei. Só rico com QI baixo tem culpa por não ser pobre. É bem chato – eles só falam sobre as férias no Nordeste, só vêem filme francês e ficam o dia todo ouvindo MPB... Uma noite, depois do terceiro cd da Maria Bethania, eu perdi a paciência e fui embora. Agora aqui estou eu, tentando sobreviver. E quer saber o que é pior?
- O quê?
- Ando me sentido culpada.

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